Evangelizar as cidades e viver no campo (Revista Adventista 1994)

vida no campo revista adventista

Evangelizar as cidades e viver no campo: um paradoxo da nossa missão

Como devem os membros da Igreja se posicionar diante deste dilema?

José Miranda Rocha

Professor de Evangelismo do SALT-IAE,

Campus Central. 1994

Um dos mais fortes movimentos ocorridos dentro do século XX foi o da migração da população rural em direção às cidades. Os pequenos e médios sítios urbanos alcançaram um crescimento tão rápido que a melhor palavra para descrever tal fenômeno é inchação. As grandes cidades de nosso mundo absorvem, a exemplo de uma esponja, populações rurais que partem à procura de aventura económica ou prazer.  

As cidades incharam tanto no sécuIo XX que hoje cerca de 73% da população dos países ricos e industrializados reside em cidades. A população urbana cresce nesses países a uma taxa média de 0,9% ao ano. 

Nos países pobres, a população urbana representa apenas 35% do total, mas está crescendo em ritmo acelerado sob uma taxa média de 3.7% ao ano.l Na década de 50, sete entre as dez maiores áreas metropolitanas do mundo pertenciam aos países desenvolvidos e não ultrapassavam os 15 milhões de habitantes. No final dos anos 90, a projeção estatística indica que oito das dez maiores cidades estarão nos países pobres ou em desenvolvimento, com populações superiores a 15 milhões de habitantes.2

Ao fator crescimento deve ser acrescentado outro que agrava ainda mais a situação das grandes cidades mundiais. Como a taxa de crescimento  das áreas metropolitanas ocorre em países pobres ou em desenvolvimento, a escassez de recursos econômicos compromete, em termos reais, a urbanização das populações que acorrem para os grandes centros. 

Milhares de pessoas são submetidas ou submetem-se a um nível de vida sub-humano bem exemplificado pelas favelas de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Cidade do México. Doenças aumentam por falta de higiene. Prostituição moral e sexual domina a mente dos habitantes da periferia. Marginalidade e criminalidade geram o medo mórbido que assalta e mata os habitantes das megalópoles.

Dilema Missiológico  

Por causa desse fenômeno socioeconômico, os Adventistas do Sétimo Dia veem-se diante de um dilema missiológico. Onde deveriam morar para cumprir o mandato evangélico de Mateus 28:18-20? Há os que advogam o ponto de vista de que a comissão evangélica exige a presença dos que conhecem a mensagem, como moradores permanentes, nas grandes cidades.

Os que assim pensam dizem que essa é a chance de a Igreja estar em contato com as multidões que precisam ouvir a última mensagem de advertência da parte de Deus. 

Sem descartar a nossa obrigação moral de pregar nas regiões não-cristãs por excelência, o Dr. Gottfried Oosterwal declarou que a "missão da Igreja Adventista hoje não é apenas uma missão a milhões: é uma missão às cidades".

Oosterwal é decisivo em acrescentar que "se a Igreja fracassa em comunicar o evangelho às cidades, ela fracassa no seu mandato por completo, pois o mundo ao qual somos enviados hoje é um mundo urbano".

Por outro lado, há a corrente dos que argumentam que, embora as metrópoles devam ser evangelizadas, esta obra não deve exigir que os membros da Igreja residam nelas. O alvo desses é viver em regiões rurais onde possam estar livres das influências urbanas que corrompem a moral e a espiritualidade, e, ao mesmo tempo, encontrar ambiente para desfrutar de melhor saúde física. 

Eles têm em vista a sua salvação e a dos seus filhos. Usam textos bem explícitos da Bíblia para dar suporte à sua posição. São evocados exemplos como o de Abraão ao deixar Ur para habitar no campo, em atendimento à voz de Deus, e o de João Batista, que habitou nas montanhas da Judéia até a idade do início do seu ministério como o precursor do Messias.

A discussão em torno do tema torna-se mais intensa quando estão envolvidos interesses de obreiros e membros de igrejas que se situam ao redor de nossas instituições, como casas publicadoras, hospitais e internatos. 

Os que defendem a mudança das instituições para regiões rurais são frequentemente acusados de estarem  abandonando membros de igrejas e a população não-adventista à sua própria sorte. Argumenta-se que a organização da Igreja, através de suas instituições, deveria estar presente nas grandes cidades para dar apoio ao crescimento das congregações locais na sua obra evangelizadora.

Os defensores da retirada das instituições das grandes cidades apoiam-se na tese de que é impossível manter a vida do grupo de obreiros e estudantes  dos nossos internatos em nível espiritual compatível com o elevado padrão que se requer do povo de Deus nos últimos dias. 

A segurança das instituições em si mesmas e das famílias que as servem é constantemente ameaçada por marginais, e pela carga de estresse oriunda da tensão dos grandes centros. Alguns desse grupo também acusam o grupo dos que defendem a permanência das instituições nas grandes cidades de viverem uma vida secularizada e destituída de conteúdo espiritual.

Tenho ouvido ambos os grupos usarem as mesmas passagens bíblicas para defenderem a sua posição. Um dos textos cuja leitura tem servido aos dois lados, é Mateus 5:13. Essa passagem, comentada por Ellen G. White, é usada para defender a permanência nas grandes cidades. 

Ouve-se dizer que a Igreja, como "o sal, deve ser misturado com a substância em que é posto; é preciso que penetre a fim de conservar. Assim, é pelo contato que os seres humanos são alcançados pelo poder salvador do evangelho".

A mesma passagem bíblica é lida diferentemente por aqueles que vêem a necessidade de que o sal permaneça puro para poder ser usado com eficácia na substância sobre a qual é posto. Os escritos de Ellen G. White também são fortes argumentos em favor dos que optam pela saída das grandes cidades. 

Ela foi incisiva ao declarar que "não há uma família em cem  que melhore física, mental ou espiritualmente por estar residindo na cidade... Levai vossos filhos para longe das atrações e sons da cidade, longe do ruído dos bondes e dos carros, e sua mente se tornará mais saudável".6

Como devem os membros da igreja se posicionar diante de tal dilema?  Qual deveria ser a posição da organização da Igreja Adventista do Sétimo Dia ao lidar com o assunto?

A estratégia divina

O Senhor propõe uma estratégia para conciliar ambas as necessidades — a de evangelizar as grandes cidades e a de buscar um estilo de vida saudável. Em Seu plano, o Senhor estabeleceu alguns passos que, se seguidos, redundarão em êxito evangelístico e vida física e espiritual abundante. Enumeraremos os principais passos dessa estratégia evangelística.

I. Trabalhar a partir de postos avançados. Ellen G. White escreveu que "as cidades devem ser trabalhadas de postos avançados". Disse a mensageira de Deus: "Não serão advertidas as cidades? Sim, não pelo povo viver nelas, mas por visitá-las, para adverti-las do que está para sobrevir à Terra." Ela ainda esclarece que "é desígnio de Deus que o nosso povo deverá estar localizado fora das cidades e destes postos avançados advertir as cidades, e nelas levantar memoriais para Deus".

Em outras declarações a Sra. White indica que os postos avançados devem ser as nossas instituições educacionais, médicas, escritórios e residências de obreiros.

2.Estabelecer memoriais divinos nas grandes cidades. Os postos avançados deveriam ser conectados com memoriais de Deus dentro das cidades. Casas de culto e adoração, restaurantes vegetarianos, salas para pequenos tratamentos, escolas de arte culinária, lojas de alimento saudável, salas de leitura são algumas sugestões do que deveriam ser esses memoriais de Deus. 

Ao funcionarem de domingo à sexta-feira e cerrarem as suas portas aos sábados, os memoriais divinos, como restaurantes e salas de tratamento, chamariam a atenção do povo para pontos distintivos da doutrina, como o sábado e a adoração ao Criador. 

As igrejas ou casas de culto anuncianam essa mensagem ao manterem suas portas abertas para o serviço de adoração, especialmente no sábado do sétimo dia, visto, normalmente, como um dia de grande comércio. Ellen G. White diz que "muitos centros devem ser estabelecidos empregando centenas de obreiros".

Em sua orientação quanto ao estabelecimento desses memoriais, a Sra. White destaca o fato de que, exceto os templos e casas de culto, as outras instituições podem funcionar em prédios alugados. As igrejas, porém, devem edificar o seu prédio próprio atendendo a todas as necessidades  das pessoas que ali se reunirão para adorar ao Senhor. Evite-se o luxo, mas busque-se o bom gosto e a funcionalidade. 

O funcionamento de uma igreja nas grandes cidades deve incluir, também, o planejamento e a construção de uma escola em regime de externato para atender às famílias que ainda não possam se deslocar para viver em regiões rurais. IO

3. Distância dos postos avançados. Embora não haja uma declaração tão explícita sobre a distância que deveria ser levada em consideração ao estabelecer os postos avançados, estes deveriam "estar um pouco fora das cidades ruidosas" e em lugar de fácil acesso às cidades vizinhas como campo de ação. Tal precaução evitará desperdício de tempo e recursos financeiros para a locomoção. I I

4. Evitar aglomerações. A advertência do Senhor concernente ao erro cometido pela Igreja ao se aglomerar em Battle Creek, no século passado, ainda deve ser atendida hoje: "Não vos aglomereis em um só lugar, cometendo o mesmo erro que se está cometendo em Battle Creek. Há centenas de lugares que necessitam de luz que Deus vos deu".12

5. Evitar confusão nas saídas. A saída das cidades deve ser "conforme Deus abra caminhos. Muitos terão de trabalhar fervorosamente para ajudar a abrir o caminho". Isto quer dizer que a urgência não deve desconhecer a prudência.

Tudo deve ser considerado: compromissos com o trabalho, responsabilidade para com os parentes e amigos, o treino para a sobrevivência física e o futuro da família, preços para a venda de imóveis urbanos e aquisição de propriedades rurais, distância e facilidades de acesso aos grandes centros, ocupação das famílias na zona rural. Os próprios motivos para sair devem ser considerados com muita oração. 14

6. Modelos a serem seguidos. O exemplo de ordem e planejamento usado nas mudanças de sedes de instituições adventistas no mundo e, particularmente no Brasil, deveria ser um modelo para outras instituições da estrutura oficial da Organização e outras de sustento próprio efetuarem a sua transferência para uma zona urbana menor ou região rural. Famílias deveriam procurar os mesmos princípios de ordem e prudência ao pensarem em sua saída dos grandes centros.

7. Razões para sair. Existem basicamente duas razões: (l) A filosofia de vida adventista em busca de melhor vida física, moral e espiritual; e (2) a escatologia adventista que vê as grandes cidades como o palco onde se concentrarão a hostilidade e perseguição aos fiéis quando da promulgação do decreto dominical. 

Em relação ao primeiro motivo, a orientação de ElIen G. White é que "quanto mais chegarmos a estar em harmonia com o plano original de Deus, mais favorável será nossa posição para assegurar saúde ao corpo, espírito e alma". 15 Referindo-se ao decreto dominical, a Sra. White aconselhou: 

"Repetidas vezes tem o Senhor dado instruções de que o nosso povo deve tirar suas famílias das cidades para o campo, onde poderão cultivar seu próprio mantimento; pois no futuro o problema de comprar e vender será bem sério. Devemos começar, agora, a atender às instruções que nos têm sido dadas: saí das cidades para as zonas rurais, onde as casas não são tão aglomeradas, e onde estareis livres da interferência de inimigos". 

O motivo desfaz o paradoxo

O paradoxo entre a missiologia e o estilo de vida dos Adventistas do Sétimo Dia é apenas aparente ao considerarmos os motivos para sair das cidades. Ao contrário do que muitos pensam, os crentes adventistas não deveriam abandonar as cidades à sua própria sorte quando planejam delas sair com suas instituições e famílias. 

Ao saírem das cidades, os obreiros assalariados pela Igreja e membros em geral devem ter em mente o grande benefício, que retornará em favor dos próprios habitantes das metrópoles, na forma de vidas sadias e consagradas dos servos do Senhor. Preservar-nos espiritualmente como indivíduos, famílias e igreja instituída para cumprir a grande comissão no contexto da vida urbana deve ser o motivo dominante  que leve os Adventistas do Sétimo Dia a buscarem o estilo de vida saudável que a zona rural oferece. 

Esse mesmo motivo dominou a mente dos cristãos primitivos. Deles está escrito que "não pediam uma bênção para si mesmos.  Achavam-se cheios de preocupação  pelas almas. O evangelho devia ser levado até os confins da Terra, e reclamavam a dotação de poder prometida por Cristo. Foi então que o Espírito Santo foi derramado, e milhares foram convertidos em um dia". 17

Dois perigos a evitar

O genuíno seguidor de Cristo, quer habitando nas grandes metrópoles ou nas mais isoladas regiões rurais, terá sempre perigos a enfrentar. Os maiores inimigos com os quais se deparam os crentes das grandes cidades é o da secularização e influência mundana sobre a vida moral e espiritual. No entanto, devemos ser honestos em reconhecer que mesmo em remotos rincoes do interior os mesmos perigos existem, ainda que em menor grau. 

É até possível viver sozinho e, mesmo assim, sem comunhão pessoal com o Senhor. Ademais, todos os que esperam viver à altura do seu chamado como cristãos devem estar alerta para os perigos da penetração da mídia em sua multiforme programação. A história da igreja cristã lembra-nos, com base nas tentativas de vida monástica, que é impossível ao cristão ser santo em completo estado de isolamento do seu campo de ação missionária, que é o mundo. 

Isolado, o "sal" perde o seu valor. O complexo de S'minoria santa" é uma das piores formas de pecado, pior mesmo do que a própria prostituição. Esse complexo é sempre um desvio que, não raras vezes, esconde o desejo de fuga ao mandato da grande comissão evangélica. 

Ao obedecermos ao Senhor e planejarmos a nossa saída dos grandes centros urbanos, devemos estar bem cientes de que o isolamento do mundo é contrário ao plano divino para a Sua igreja. Antes, é propósito de Cristo que nos preservemos para assumir a Sua missão em favor do mundo. "Assim como Tu Me enviaste ao mundo, Eu os enviei ao mundo" (João 17:18). 

A seguinte declaração de Ellen G. White descreve a obra final em favor do mundo: "Servos de Deus, com o rosto iluminado e a resplandecer de santa consagração, apressar-se-ão de um lugar para outro para proclamar a mensagem do Céu". A vida no campo pode ser o melhor ambiente para que o Espírito ilumine o nosso rosto com a santa consagração, mas isto somente ocorre quando estivermos em íntimo relacionamento de fé com o Senhor.  

Referências

l. Almanaque Abril 1994. pág. 212. 

2. Ibidem.

3. Oosterwal. "How Shall We Work in tlr Cities — From Whitin?'• Minisrry (junho dc 1980), pág. 18.

4. Idem. pág. 19.

5. Ellen G. White. Serviço pág. 119. 6. Vida no Campo, pág. 15.

7. Evangelismo. págs. 46 e 47. (Grifo nosso.)

8. Idem. pág. 386. (Grifo nosso.) 9. Testimonies. vol. 9. pág. 56.

IO. Evangelismo, págs. 378 e 380. I I . Medicina e Salvação. pág. 308.

12. Vida no Campo. pág. 25.  

13. Idem, pág. 27.

14. Idem, pág. 21.

15. A Ciência do Bom Viver, pág. 365.

16. Ellen White, Cana n' 5, de 1901, citada pr Fernando Chaij em Preparação Para a Crise Final, pág. 96.

17. Evangelismo, pág. 699.

18. O Grande Conflito, pág. 610.

FONTE 

Esse artigo é de autoria de José Miranda Rocha, Professor de Evangelismo do SALT-IAE, Campus Central. publicado na Revista Adventista, Junho 1994

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