Através da história da Igreja Cristã, o assunto da Cristologia, que trata de Cristo, Sua pessoa e obra , foi o centro de muitas disputas teológicas. As mais danosas heresias e mais dramáticos cismas tiveram suas origens na diversidade de teorias concernentes à pessoa e obra de Cristo.
Em razão da helenização da fé (conformar a fé ao caráter e cultura gregos) e do surgimento de doutrinas heréticas, os apóstolos e seus sucessores foram forçados a contender em função da questão da natureza divino-humana de Cristo. Isso deu em resultado à criação de “uma Cristologia no estrito sentido do termo, ou uma expressa doutrina da pessoa de Jesus Cristo”.
Hoje, a natureza humana de Cristo ainda permanece como um sério problema para o Cristianismo, e várias denominações tentam resolvê-lo conforme uma variedade de modos. Esse é um importantíssimo tópico. Desse ponto dependem não apenas nossa compreensão da obra de Cristo, como também o entendimento do modo de vida esperado de cada um de nós, enquanto seguimos “a verdade que é em Jesus”. (Efés. 4:21) Os apóstolos enfrentam as primeiras heresias
É interessante notar que nos primórdios do Cristianismo, a questão da pessoa de Cristo não foi: “O que foi a Sua natureza?”, mas “Quem é
Ele?” Quando Jesus perguntou a Seus discípulos: “Quem, dizem os homens, ser o Filho do homem?” Eles responderam: “Uns dizem que é João, o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou algum dos profetas.” “Mas vós, perguntou-lhes Jesus, quem dizeis que Eu Sou?” Simão Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” (Mat. 16:13-16).
À medida que a evangelização do mundo grecoromano progredia, a questão deixou de ser uma simples matéria sobre quem Jesus era. Agora o problema mudou de rumo: Como Jesus Se referia a Deus? Era Ele verdadeiramente divino, ou apenas um homem? Se ambos, como podemos explicar o relacionamento entre Sua divina natureza e Sua humana natureza? A igreja, ao confrontar-se com a heresia, foi obrigada a considerar essas questões e tentar respondê-las.
Paulo e João foram os primeiros a refutar os falsos ensinos sobre a natureza de Cristo, em resposta a dúvidas que surgiram acerca de Suas divindade e humanidade. Na epístola aos Filipenses, depois de enfatizar a igualdade de Cristo com Deus, Paulo diz que Jesus veio a este mundo e tornou-Se “semelhante aos homens, e achado na forma de homem...” (Fil. 2:7 e 8) Igualmente, tendo escrito aos romanos que Deus enviou “Seu Filho em semelhança de carne do pecado...” (Rom. 8:3), ele declara enfaticamente aos colossenses que Cristo “é imagem do Deus invisível”, e que “nEle habita corporalmente toda a plenitude da Divindade”. (Col. 1:15; 2:9)
Além disso, João foi compelido a afirmar em seu evangelho que “o Verbo era Deus”, e que “o Verbo Se fez carne” (João 1:1 e 14) Então, confrontado com as alegações dos gnósticos, ele decidiu que era necessário advertir a igreja contra aqueles que negavam a humanidade de Cristo: “Nisto conheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus, não é de Deus; esse é o espírito do anticristo.” (I João 4:2 e 3)
A Cristologia através dos séculos
Desde o início do segundo século, os sucessores dos apóstolos foram atraídos para os inexoráveis argumentos que tratam da pessoa de Cristo, e em particular de Sua natureza. Defrontado com o desenvolvimento do arianismo, que negava a divindade de Cristo, o Concílio de Nicéia (325 a.
D.) resolveu o problema afirmando a divindade de Jesus. Permaneceu ainda o problema das duas naturezas, humana e divina, que foi solucionado pelo Concílio de Caldedônia (451 a. D.), e esse dogma tornou-se a declaração de fé da Igreja Católica.
Os reformadores não foram, em realidade, inovadores cristológicos; eles estavam mais preocupados com os problemas referentes à natureza da fé e da justificação, do que com aqueles da Cristologia. Em termos gerais, todos eles aceitaram “o dogma fundamental da essencial divindade de Cristo, com a unidade da pessoa e a dualidade de naturezas”. Apenas uns poucos teólogos protestantes na Suíça de fala francesa abandonaram a “doutrina das duas naturezas”.
Entretanto, muitos teólogos do século vinte seguiram suas pegadas. Oscar Culmann, por exemplo, considera que “a discussão relativa às duas naturezas é, essencialmente, um problema grego e não judeu ou bíblico”.
Emil Brunner garante que “o complexo conjunto dos problemas suscitados pela doutrina das duas naturezas é o resultado de uma questão equivocadamente apresentada, de um problema que deseja conhecer algo que nós simplesmente não podemos saber, ou seja, como a divindade e a humanidade estão unidas na pessoa de Cristo”.
Essa notável retirada do dogma de Calcedônia por parte desses teólogos, jaz na base da nova tendência em Cristologia. A vasta maioria dos teólogos, hoje, tanto católicos como protestantes, reconhecem que o estudo do mistério de Cristo não pode mais estar separado de seu significado para a humanidade. Em outras palavras, uma característica das Cristologias contemporâneas é que elas estão mais estreitamente ligadas à antropologia.
Naturalmente, essa nova relação conduz alguns teólogos a uma consideração muito mais profunda da natureza humana de Cristo. O conceito de que o Filho do homem tomou a natureza humana é reconhecido por todos os cristãos. Mas a questão é sobre que espécie de natureza humana Ele assumiu: aquela afetada pela queda ou a originalmente criada por Deus? Em outros termos, a natureza de Adão antes ou depois da queda?
Cristologia contemporânea
Através dos séculos passados, atrever-se a sugerir que a natureza humana de Cristo era a de Adão após o pecado, teria sido considerado uma grave heresia. Hoje, muitos consideram que essa questão ainda é discutível.7
Não obstante, devemos certamente reconhecer que os mais eminentes teólogos protestantes da segunda metade do século vinte, tais como Karl Barth, Emil Brunner, Rudolf Bultmann, Oscar Culmann, J. A. T. Robinson e outros, têm-se abertamente declarado em apoio à natureza humana afetada pela queda.
Karl Barth foi o primeiro a declarar seu apoio a essa explanação, num artigo publicado já em 1934.8 Porém, sua mais abrangente análise é encontrada em Dogmatics (Dogmáticos), sob o título Truly God and Truly Man (Verdadeiramente Deus e Verdadeiramente Homem).9 Tendo afirmado sua crença de que Jesus Cristo era “verdadeiramente Deus”, ele considera pormenorizadamente como o “Verbo Se fez carne”.
Para ele não havia nenhuma possível dúvida sobre a decaída natureza humana de Jesus. Com certeza ele afirmou: “Ele (Jesus) não era um pecador. Mas interior e exteriormente Sua situação era de um homem pecador. Ele nada fez do que Adão praticou, mas viveu na forma em que precisou assumir como base o ato de Adão.
Ele suportou inocentemente tudo aquilo de que temos sido culpados – Adão e todos nós em Adão. Espontaneamente, Ele Se solidarizou conosco e entrou em necessária associação com nossa perdida existência. Apenas desse modo poderia a revelação de Deus a nós e nossa reconciliação com Ele, manifestamente tornar-se um evento nEle e por Ele.”
Tendo justificado suas conclusões com versos de Paulo e a epístola aos Hebreus, Barth acrescenta: “Mas não deve haver qualquer debilitação ou ensombrecimento da salvadora verdade de que a natureza que Deus assumiu em Cristo é idêntica à nossa natureza, como nós a entendemos à luz da queda. Se isso fosse diferente, como poderia Cristo ser realmente semelhante a nós? Que relação teríamos com Ele? Estamos diante de Deus caracterizados pela queda.
O Filho de Deus não apenas assumiu nossa natureza, mas Ele penetrou na concreta forma de nossa natureza, sob a qual estamos perante o Senhor como homens amaldiçoados e perdidos. Ele não criou ou estabeleceu essa forma diversamente da nossa; embora inocente, Ele Se tornou culpado; a despeito de ser sem pecado, Ele Se tornou pecado. Mas essas coisas não devem levar-nos a diminuir Sua completa solidariedade conosco e desse modo afastá-Lo de nós.”11
Emil Bruner, em seu Dogmatics, chega à mesma conclusão. Ele não hesita em declarar que “o fato dEle ter nascido de mulher, assim como nós, mostra que Ele era verdadeiramente homem”. Bruner indaga: “Foi Jesus de fato um homem como nós e assim, um pecador?” A resposta vem da Escritura: “O apóstolo Paulo, falando da humanidade real de Jesus, vai até onde é possível quando diz que Deus enviou Seu Filho em semelhança de carne pecaminosa (Rom. 8:3). A epístola dos Hebreus acrescenta: ‘Um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado.’
Hebreus 4:15.” Enquanto Brunner concorda que “Ele era um homem como nós”, também reconhece que “Ele não é um homem como nós mesmos.”14
Apoiando-se nos mesmos versos, Bultmann e Culmann, concordam inteiramente. Em seu comentário sobre Filipenses 2:5-8, Culmann escreve: “A fim de assumir a ‘forma de servo’, foi necessário antes de mais nada, tomar a forma de homem, vale dizer, um homem afetado pela decadência humana.
Esse é o significado da expressão ‘tornando-se semelhante aos homens’ (verso 7). O sentido de homoiomati é perfeitamente justificado. Ainda mais, a seguinte frase enfatiza que ao encarnar-Se, Jesus, ‘homem’, aceitou completamente a condição dos ‘homens’. Aquele que, em essência, foi o único Deushomem... tornou-Se pela obediência ao Seu chamado, um Homem celeste, de forma a cumprir Sua obra expiatória, um Homem encarnado em carne pecaminosa.”
Seria lastimável deixar de mencionar aqui a posição do bispo anglicano J. A. T. Robinson, que em seu estudo sobre o conceito de “corpo” na teologia paulina, expressou-se mais claramente do que qualquer outro sobre a natureza humana de Jesus: “O primeiro ato no drama da redenção”, escreveu ele, “é a auto-identificação do Filho de Deus até o limite, todavia sem pecado, com o corpo carnal em seu estado decaído.”
“É necessário acentuar essas palavras”, detalha ele, “porque a teologia cristã tem sido extraordinariamente relutante em aceitar corajosamente as audaciosas e quase rudes frases que Paulo usa para demonstrar o agravo do evangelho nesse ponto. A tradicional ortodoxia católico-protestante sustenta que Cristo encarnouSe numa natureza humana não-decaída.”17
“Mas, se a questão for reafirmada em seus termos bíblicos, não há razão para temor – e realmente são eles os terrenos mais importantes a pesquisar – a imputação a Cristo de uma humanidade sujeita a todos os efeitos e conseqüências da queda.”
Além disso, o problema foi objeto de uma proposta de Thomas F. Torrance, numa sessão da Comissão “Fé e Constituição” do Concílio Ecumênico Mundial, ocorrida em Herrenalb, Alemanha, em julho de 1956. “Necessitamos considerar mais seriamente o fato de que o Verbo de Deus assumiu nossa sarx, isto é, nossa humanidade decaída (e não uma imaculadamente concebida), para assim santificá-la. A doutrina da igreja necessita ser pensada em termos do fato de que Cristo Jesus assumiu nossa humanidade e Se santificou. A igreja é santa na santificação de Cristo.”
Thomas Torrance é ainda mais explícito: “Talvez a mais fundamental verdade que temos aprendido da igreja cristã, ou antes, reaprendida, uma vez que a suprimimos, é que a encarnação foi a vinda de Deus para nos salvar no cerne de nossa decaída e depravada humanidade, quando ela está em seu ponto mais alto de inimizade e violência contra o reconciliante amor divino.
Quer dizer, a encarnação deve ser compreendida como a vinda de Deus para tomar sobre Si mesmo nossa caída natureza humana, nossa real existência carregada de pecado e culpa, nossa humanidade enferma de mente e alma, em sua alienação do Criador. Essa é a doutrina encontrada em toda parte na igreja primitiva, nos primeiros cinco séculos, e expressase freqüentemente em termos de que o homem total teve de ser assumido por Cristo, para que o homem total pudesse de ser salvo, e para que o não-assumido se perca, ou seja, o que Deus não assumiu em Cristo não seja salvo...
Assim a encarnação devia ser entendida como o envio do Filho de Deus na concreta forma de nossa própria natureza pecaminosa e como sacrifício pelo pecado, no qual Ele julgou o pecado em sua verdadeira natureza, de forma a redimir o homem de sua mente carnal e hostil.”20
O rol de teólogos que hoje estão comungando com esse pensamento poderia ser estendido. Mas esses homens tiveram precursores, dentre os quais estão pioneiros da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Os precursores da Cristologia contemporânea
Seria equivocado pensar que os teólogos do século vinte foram pioneiros em sua posição com respeito à natureza humana de Cristo. Karl Barth cita muitos autores do século dezenove em seu Dogmatics, os quais defenderam a crença da natureza decaída.
De maneira ainda mais pormenorizada, Harry Johnson, um valoroso defensor da natureza pósqueda de Cristo, refere-se a Gregory de Nazianzus (329-389), que falou convincentemente acerca de Cristo: “Pois aquilo que Ele não assumiu, Ele não pode salvar; mas aquilo que está unido à Sua divindade, está também salvo.”22 Então Johnson dedica um capítulo inteiro ao ensino de doze precursores, desde o décimo sétimo até o décimo nono século; desde Antoinette Bourignon até Edward Irving; todos afirmaram que Cristo tomou a natureza de Adão tal qual ela era após a queda.
Com Johnson, concluímos o sumário histórico dos testemunhos dos teólogos contemporâneos. A partir de 1850, a Cristologia dos pioneiros adventistas seguiu as mesmas linhas de interpretação. Nesse tempo, essa posição era ainda insólita e foi considerada herética pelo cristianismo tradicional e radical. Quão interessante é que a Cristologia desses pioneiros é agora confirmada por alguns dos melhores teólogos contemporâneos!
Segue-se que a Cristologia desenvolvida pelos pioneiros do movimento adventista entre 1852 e 1952, poderia bem ser considerada a vanguarda da Cristologia contemporânea. Tal avançada posição, então, merece ser examinada em detalhes para benefício daqueles que estão buscando pelos fundamentos cristológicos.
A história da Cristologia adventista
Muitos autores ingleses têm, em anos recentes, se expressado sobre o assunto, a maioria dos quais assume a posição da pré-queda ou pré-queda modificada. Todavia, até agora, não há nenhuma obra que examine a história da crença da Igreja Adventista sobre o assunto.
Alguns autores têm generosamente provido obras particularmente úteis neste projeto. Elas incluem, 1) de Herbert E. Douglass, A Condensed Summary of the Historic SDA Positions on the Humanity of Jesus (Um Sumário Condensado das Posições Históricas dos Adventistas do Sétimo Dia Sobre a Humanidade de Jesus); 2) William H. Grotheer, An Interpretative History of the Doctrine of the Incarnation as Taught by the SDA Church (Uma História Interpretativa da Doutrina da Encarnação, Como Ensinada Pela Igreja Adventista do Sétimo Dia; 3) Bruno W. Steinweg, The Doctrine of the Human Nature of Christ Among Adventists Since 1950 (A Doutrina da Natureza Humana de Cristo Entre os Adventistas, Desde 1950). Esses autores devem ser especialmente reconhecidos.
A história da Cristologia apresentada nestas páginas é dividida em cinco seções. A parte I inicia com um capítulo dedicado à divindade de Cristo, uma doutrina que não foi aceita sem argumentação por muitos líderes adventistas. No segundo capítulo, são apresentados os fundamentos bíblicos nos quais foi baseada a interpretação da natureza pós-queda de Cristo, unanimemente aceita entre 1852 e 1952.
A parte II é dedicada a um pormenorizado estudo da Cristologia como entendida pelos pioneiros adventistas, enquanto que a parte III contém uma coleção de testemunhos extraídos da literatura oficial da igreja. Na parte IV, perfilamos o esquema histórico da controvérsia surgida por volta de 1950, seguindo uma nova interpretação. Essa seção está fundamentada essencialmente nos escritos de Ellen G. White.
Espero que o leitor compreenda o significado e a magnitude da atual controvérsia. Talvez a discussão dos correntes pontos de vista inclusos na parte V, ajude um pouco a unificar o pensamento da igreja sobre o assunto da natureza humana de Cristo.